top of page
Flavio Assis por Luan Cardoso-106.jpg

Apresentação

A tradição da filosofia africana, ubuntu, compreende o tempo como trânsito, cujo princípio é a ancestralidade, e, o futuro, seria apenas uma fábula que o Ocidente inventou para sabotar saberes, outros modos de ser e estar no mundo. O álbum Luar-do-chão, do compositor e musicista baiano, Flávio Assis (43), apresenta ao público composições autorais, que nascem desta consciência diante da vida.  O título é uma referência à obra, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, do escritor moçambicano, Mia Couto, cuja trama se desenrola na ilha ficcional de Luar-do-Chão. Nesta narrativa, a ancestralidade convoca o tempo presente para uma reconciliação, onde o real e o transcendente se confundem. É neste bojo que nasce a composição-título do álbum – um samba chula, filho pródigo do recôncavo baiano, das umbigadas que somente as sambadeiras sabem traduzir em fé e festa. E assim, também, surgem cidade e sertão, litoral e cerrado, ao longo da trilha musical do artista, que se faz um trovador do seu tempo, sensível ao mundo que te cerca, sem se permitir tirar os pés da ancestralidade. E como no dizer do artista: “faço música como forma de anunciar o meu lugar, o meu chão, a minha gente, porque somente assim sei viver a partilha do mundo.” Assim, o álbum Luar-do-chão, é tecido como forma de aquilombamento, repleto de participações fundamentais às costuras poéticas e musicais deste novo trabalho. É em tudo uma obra de tecitura coletiva, um rio feito de muitas águas, que desaguam no mar de afro-brasilidades, onde fluem o ijexá, o aguerê, o ilú, o coco, a capoeira, e o baião, todos tangidos pelo violão-tambor do musicista baiano. Gravado no estúdio do selo Juá, em São Paulo-SP, entre outubro de 2022 e maio de 2023, Luar-do-chão, parte de uma premissa criativa: a voz e o violão de Flávio Assis, como fio condutores. A partir desta referência, foram convidados os músicos, Antônio Porto (baixo e percussão), Cassio Calazans (guitarra), Ricardo Braga (percussão), Cauê Silva (percussão), e Leonardo Mendes (guitarra e viola machete), para formação de uma banda base. Ao longo do processo, participações muito especiais trouxeram novas matizes ao disco, o que garantiu uma imagem sonora repleta de polifonias. São elas: Tiganá Santana (coautoria na faixa, Afrolusa; vocal e declamação de poema original) Aiace (vocais na faixa, Mãe preta) Pastoras do Rosário (coro na faixa, Dona sinhá) Allan Abbadia (trombone na faixa, Oriki de Xangô) Yaniel Matos (violoncelo na faixa, Árvore – a curandeira) Messias Britto (cavaquinho nas faixas, Bahia, Afro-Sampa e Mãe preta) Assina a capa do álbum e do single de abertura, Benjamin Onirê, o artista plástico e designer paulistano, Edson Ikê.

Tocando violão

Single
Benjamin Oniré

A canção Benjamin Onirê, escolhida como single para abrir os caminhos do álbum, Luar-do-Chão, do compositor e musicista baiano, Flávio Assis (43), foi composta em 2016, sob encomenda para o filme corpo Quilombo (finalista da Mostra de Cinema de Tiradentes, em 2019), do diretor de cinema, Léo Costa. Trata-se de uma homenagem ao artista multifacetado, Benjamin de Oliveira (1870 – 1954), cuja história de vida inspira beleza, poesia, genialidade e, também, inspira-nos a refletir sobre as muitas formas de apagamento impostas pelo racismo à brasileira. A canção, Benjamin Onirê é um baião travestido que enamora o jazz, suscitando polirritmias, ora Sertão, ora Oriente, ora Litoral e urbanidade. Há neste single a confluência do contemporâneo e do brejeiro, no mesmo solo de inventividades do compositor.

Tambores de mão

Biografia

O compositor e musicista, Flávio Assis, é natural de Salvador, Bahia. Nascido em 20 de agosto de 1979, foi introduzido no universo musical através da sua mãe, Eliene (in memoriam), cuja coleção de vinil desfilavam nomes que iam de Roberto Carlos a Luiz Gonzaga, Stevie Wonder a Reginaldo Rossi, de Maria Bethânia a Raul Seixas, Tracy Chapman, Elton John, Waldick Soriano e Odair José. “Minha mãe foi minha primeira professora de música. Através dos seus discos aprendi muito sobre música brasileira e internacional, sobre a importância de estar de mente aberta à pluralidade, ao novo. Minha mãe foi a pessoa mais eclética que conheci, e isto me formou como ser humano”, completa o artista. O violão chegou em sua vida aos 12 anos, através do seu pai, Francisco, que presenteou seu irmão caçula com um Di Giorgio, em seu aniversário. A “raspa de tacho” da família não deu muita bola para aquela novidade, e Assis, que sonhava ser pianista, logo se afeiçoou ao instrumento, e abandonou a ideia das teclas. Seu pai lhe ensinou os primeiros acordes e dedilhados, além de se valer do auxílio de revistinhas de cifras, de artistas consagrados, encontradas aos borbotões nas bancas de revistas, nos idos dos anos 90.

Influências

Além da música no seio do lar, Assis contou com a forte influência de uma família amiga e vizinha, no mesmo prédio onde morava. Seu Gerson Veloso, pai dos seus amigos de infância, tocava violão à guisa de Gilberto Gil, cheio de suingue e muito balanço. Na casa dos amigos, Assis foi apresentado à sua maior referência, um dos maiores mestres da música popular brasileira. “Eu queria ser como Gilberto Gil, tocar como ele, compor canções como ele, e durante muito tempo eu o imitei, e isto foi muito importante para mim. Aquele homem negro, talentoso, luminoso, genial, dizia-me sobre ser negro, sobre ser artista, sobre ser um sujeito coletivo e singular.” Assim, Gil, se tornou a sua maior referência. O interesse pelo instrumento só crescia, então vieram os primeiros estudos de violão popular e clássico, por um breve período de três anos. Daí em diante, escuta atenta, apresentações em bares da noite soteropolitana, e muita intuição foram moldando o artista. Contudo, em meados dos anos 2000 se deu a grande revolução em sua vida, quando foi introduzido à liturgia e sonoridades do Candomblé da Bahia, especialmente o terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá – um dos mais tradicionais do Brasil, fundado em 1910. Como no dizer do artista: “cresci no bairro do Cabula, em Salvador, onde da janela de casa eu podia escutar o rufar contagiante dos tambores do Ilê, madrugada adentro. Ainda hoje não sei explicar, mas apenas sentia que toda aquela sonoridade rufava dentro de mim também. Era como se os alabês do terreiro me chamassem para a festa ancestral.” Foi a ialorixá histórica da casa, Mãe Stella de Oxóssi que o revelou, no jogo de ifá, a sua ancestralidade no candomblé: cabeça de Xangô Ayrá com Oxalufã. O candomblé e sua musicalidade foram janelas para a entrada das sonoridades do recôncavo baiano: o samba chula, o samba de roda, a polirritmia, as danças, a fé e a festa, a ancestralidade no canto, no rodopiar dos pés, o choque das umbigadas. Neste caminho, chegou à sua vida o violão e o canto do mestre, Roberto Mendes. Este encontro intergeracional, deixou marcas profundas na forma como Assis passou compreender sobre o propósito da sua arte, do seu cantar, e percebe-se nitidamente na forma com seu violão se manifesta em muitas das suas composições.

Mas, a vida é real e de viés

Assim como nos ensina a canção do mestre, Caetano Veloso, a vida é mesmo real e de viés. E pelas barrancas da vida, Assis se formou em Geografia e se tornou professor da disciplina, onde começou atuar como professor da disciplina em escolas e cursinhos pré-vestibulares, em Salvador, e desde 2013, na cidade de São Paulo, onde vive hoje. É mestre em ciências humanas pela faculdade de Filosofia, Letras e Ci6encias Humanas – FFLCH/USP, e se dedica a pesquisar sobre educação decolonial e relações étnico-raciais. A sala de aula é parte fundamental da história de vida deste artista brasileiro, que compreende a educação como importante instrumento de comunhão e partilha humana, onde saberes são produzidos em comunhão. Como no grande balé da vida, Assis concilia a sala de aula com seu violão, suas composições, sua música, e na obra do educador pernambucano, Paulo freire (1921-1997), tira inspiração para ser o professor que estar sendo e deseja vir a ser. “Faço música como quem cultiva cartografias existenciais, e, por isso mesmo, teço paisagens, bordo horizontes, invento territórios, em forma de poética e melodia, porque minha música é se afaz e se anuncia de uma territorialidade ancestral.”

​Álbum de estreia 

Em 2009, Assis estreou no mercado fonográfico com o Álbum independente, A cor da noite. Produzido e arranjado pelo baixista e maestro baiano, Gilmário Celso, e gravado no lendário estúdio da música baiana, WR, o trabalho apresenta as primeiras composições do artista, fortemente ligadas às influências da cultura afro-brasileira. Na faixa, Ode a Oxalufã, conta com a participação muito especial do cantor e compositor paraibano, Chico César. A cor da noite é um cartão de visita, que diz dos muitos lugares que Assis anuncia sua lira, sua trova. Em 2013, veio o momento de arribação. Mudando-se para a cidade de São Paulo, definitivamente, Assis estreou na capital paulista na Virada Cultural daquele ano, com o show, Bahia, Afro-Sampa, no teatro da Galeria Olido. Os anos seguintes foram de apresentações espaçadas em tetros da rede SESC, e em 2017, apresentou seu último espetáculo, Águas da Bahia, com a participação especial da cantora baiana, Mariene de Castro. Foram duas noites inesquecíveis de celebração da música popular da Bahia, no teatro do SESC Bom Retiro.

bottom of page